MAGNA CARTA E O LEGADO DA LIBERDADE
Aldir Guedes Soriano
No momento em que o Reino Unido comemora os 800
anos da célebre Magna Carta, é importante refletir sobre o seu significado,
espírito e alcance. A relevância desse documento não está restrita aos países
anglo-saxões ou de língua inglesa, uma vez que os seus princípios são
universalmente válidos e verdadeiramente civilizadores. Em última análise, o
que está em jogo é a liberdade. A comemoração do advento da Magna Carta é
oportuna e traz à tona questão atual e urgente: a limitação do poder político
em face da liberdade individual.
Durante a Era Medieval, reinou na Inglaterra um dos
piores reis da história. O Rei João cobrava impostos em demasia e prendia
arbitrariamente os seus desafetos. Em junho de 1215, às margens do Rio Tâmisa,
na localidade de Runnymede, os barões fizeram com que João selasse a Magna
Carta. Assim, o Rei foi forçado a abrir mão de parcela de seu poder e a
submeter-se à lei. Agora, conforme o acordo pactuado, até mesmo o rei estaria sob
o império das leis.
Curiosamente, escrita originariamente em latim, a
Magna Carta não surtiu efeitos imediatos. O documento teve sucessivas reedições
com poucas mudanças textuais e foi traduzido inicialmente para o francês e,
posteriormente, para o inglês. As ideias inseridas no acordo entre o monarca e
os barões foram fundamentais para a consolidação do sistema jurídico inglês (Common
Law). Parte das disposições da Carta integra atualmente a consuetudinária
Constituição da Inglaterra. Essas disposições pavimentaram o caminho para que o
império da lei (rule of law) se transformasse no núcleo fundamental da
ordem jurídica britânica. Conforme esse princípio, o poder monárquico é
limitado, porquanto também está sujeito à lei.1
Margaret Thatcher, quando exercia a função de Primeira-Ministra
do Reino Unido, conduziu a economia inglesa ao encontro dos fundamentos da
Magna Carta: menos Estado, menos impostos e mais liberdade econômica. Certa
vez, rebateu as críticas dos intervencionistas e igualitaristas dizendo que
eles, na verdade, não se importam com que os pobres fiquem mais pobres. O
empobrecimento dos mais pobres é o efeito colateral das políticas
assistencialistas, promovidas em nome da redução das desigualdades. Na
realidade, ao se promover o empobrecimento dos mais ricos, os pobres ficam mais
pobres. Nesse sentido, é certo que mais impostos significa menor crescimento
econômico e, por conseguinte, menos empregos. Atualmente, o Primeiro-Ministro
do Reino Unido, David Cameron, demonstrou apreço pela mesma linha,
verdadeiramente liberal, consistente em menos Estado, menos impostos, mais
liberdade e mais empregos.2
No período colonial americano havia um problema
semelhante ao enfrentado pelos súditos do Rei João. Os colonos eram explorados
com a cobrança abusiva de impostos, incluindo a excessiva taxação do chá. Essa
questão foi o pomo da discórdia entre a colônia e a metrópole. Nesse
contexto, Thomas Jefferson e demais Pais Fundadores foram influenciados
pela premente ideia da limitação do poder do Estado, inscrita na surpreendente
Magna Carta. Assim, sob a influência do Direito inglês, os americanos
construíram uma nação livre e próspera. Com os fundamentos da livre-iniciativa,
da liberdade e da justiça para todos, os Estados Unidos experimentaram o maior
nível de desenvolvimento econômico e social da história universal. Atualmente,
porém, esse legado dos Pais Fundadores está sendo gradativamente
olvidado, senão destruído. Como observa Ben Carson, os Estados Unidos ainda encontram-se
no topo do mundo, mas estão em declínio.3
Atualmente, os Estados Unidos estão andando na
contramão dos princípios da Magna Carta ou mesmo de sua Declaração de
Independência. Gradativamente, os “liberais”, no sentido pervertido do termo,
estão substituindo o império do Direito (rule of law), pelo igualitarismo
(rule of leveler egalitarianism), apenas como pretexto para aumentar o
tamanho do Estado, concentrar o poder nas mãos do Executivo e retirar mais
impostos das camadas produtivas da sociedade. Ao mesmo tempo em que os conflitos
raciais são sensivelmente fomentados e a Polícia é demonizada, instigam-se as
minorias ao desejo de um Estado paternalista que suposta ou ilusoriamente seria
capaz de cuidar deles.4 Além disso,
segundo o médico e pré-candidato a Presidente, Ben Carson, o programa de saúde
conhecido como Obamacare é injusto. Com esse programa, os americanos
passaram a gastar duas vezes com saúde para receber em contrapartida um
atendimento ainda mais precário. Ademais, o Obamacare é desastroso para
e economia. É lamentável como os americanos estão olvidando as suas raízes
culturais que os levaram ao topo do mundo.
Na América Latina, Nicolás Maduro, na esteira do Rei
João, também é adepto da cobrança excessiva de impostos. Com o mesmo estilo
tirânico de governar, Maduro também prende arbitrária e injustamente os seus
adversários políticos. Segundo a ativista de direitos humanos, Lillian Tintori,
há 98 presos políticos na Venezuela. No ano de 2014, ocorreram 3.414 prisões
arbitrárias e 200 casos de tortura. As prisões são invariavelmente ilegais, sem
acusação formal, ampla defesa e o devido processo legal. Por isso, “não há
democracia no meu país,” afirma Tintori. O populismo bolivariano levou o país à
crise econômica e ao desabastecimento. A população tem dificuldade para encontrar
os bens de consumo mais essenciais, como produtos de higiene e alimentação
básica. Inúmeros estudantes foram assassinados pelo regime bolivariano durante
manifestações pacíficas. Ademais, não há liberdade de expressão. Os meios de
comunicação são controlados. Chaves estatizou 240 emissoras de rádio. Diversas
emissoras de televisão foram fechadas.
Lillian Tintori visitou o Brasil no mês de junho,
na esperança de que a nossa Chefe de Estado adotasse postura mais ativa na
libertação dos presos políticos venezuelanos, incluindo o seu próprio marido, o
oposicionista Leopoldo López, que se encontra encarcerado há mais de um ano. A Presidência
da República brasileira, contudo, não mudou o tom ameno com que vem conduzindo
a questão. Por enquanto, a Presidente não saiu verdadeiramente em defesa dessas
vítimas de graves violações dos direitos humanos, como seria esperado e, até
mesmo, preconizado pela Constituição brasileira. Conforme a Constituição de
1988, o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da
prevalência dos direitos humanos. Esse princípio tem primazia. Está acima do
princípio da não-intervenção. Assim, o silêncio ou a tolerância em relação aos
abusos de direitos humanos na Venezuela são injustificáveis.
Hoje, o Brasil encontra-se mergulhado em severa
crise econômica e política. Há anos vem caminhando no sentido contrário dos
fundamentos verdadeiramente liberais e conservadores da Magna Carta. Além
disso, o Governo brasileiro parece seguir à risca a receita leninista da
aceleração dos gastos públicos e o gradativo aumento de impostos, preconizado
por Marx e Engels. Assim, os gastos excessivos, a falta de investimentos em
infraestrutura, a falta de planejamento e a corrupção sistêmica levaram o País ao
retorno da inflação e à recessão econômica. O aumento dos impostos e a redução
dos direitos dos trabalhadores fazem parte do ajuste fiscal. Quem pagará a
conta da ineficiência e da gastança governamental será, mais uma vez, o
contribuinte. A lógica aqui é outra: mais gastos, mais impostos, mais governo,
mais controle e maior intervenção estatal na vida privada do cidadão. De acordo
com essa lógica, não interessa cortar gastos públicos, nem diminuir o número
excessivo e desnecessário de Ministérios.
Infelizmente, a maior parte das nações ocidentais
parece ter tomado o rumo do igualitarismo, que produz pobreza, mas, por outro
lado, aumenta o tamanho do Estado e o poder dos governantes. O modelo do Estado
grande e forte é para os políticos populistas como o canto da sereia, que os
conduz ao abismo econômico. A Grécia exemplifica o fim desastroso dessa
política da gastança sem limites. Como alguém tem que pagar a conta, sempre, o
calote grego será suportado com os impostos pagos por contribuintes da União
Europeia; franceses, alemães, espanhóis etc.
Essa guinada à esquerda dos países ocidentais, ao
arrepio dos princípios da Magna Carta, do Common Law e da cultura
ocidental, é sedutora tanto para os políticos quanto para as massas de manobra.
É igualmente sedutora para os empresários corruptos. Ao invés de se promover a
livre-iniciativa, adota-se uma política protecionista e de reserva de mercado
para os amigos do “rei”. Enquanto isso, as massas de manobra são iludidas com o
mito do Estado do Bem-Estar Social, que nada faz senão aumentar o nível de
pobreza, impostos e dependência em relação ao governo. Ora, assim, os políticos
maquiavélicos a todo o momento se beneficiam dos votos cativos das massas de
manobra iludidas com o assistencialismo. O conluio com os empresários
corrompidos para assaltar os “cofres públicos” também é altamente útil aos maus
políticos. Cumpre esclarecer que não há dinheiro público e sim dinheiro do
contribuinte, que o governo gasta da maneira mais pródiga possível. Tudo isso é
feito perversamente em nome dos direitos humanos e da justiça social.
A realidade mundial é mais assustadora que a
literatura. É muito mais perturbadora que a distopia de Aldous Huxley5
ou a ficção de George Orwell. Ao rejeitar os valores e princípios de documentos
como a Magna Carta ou a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776,
abrem-se as portas para o totalitarismo, a opressão e a violações das
liberdades individuais.
O espírito libertário da Magna Carta de 1215 é a
essência dos direitos humanos fundamentais. Não há plena liberdade humana sem a
limitação do poder. Esse legado da cultura jurídica ocidental é o mais
importante antídoto contra a tirania e o abuso governamental.
ALDIR
GUEDES SORIANO é Advogado. Possui
dupla nacionalidade originária, sendo cidadão brasileiro e espanhol. Membro do
International Consortium for Law and Religion Studies (ICLARS) e do Consorcio
Latinoamericano de Libertad Religiosa. Pós-Graduado em Direito Público pelo
Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Constitucional pela
Universidade de Salamanca (Espanha). Possui diversas obras publicadas sobre
direitos humanos e liberdade religiosa. Participou de diversos congressos e
simpósios internacionais no Brasil, Estados Unidos, África do Sul, Argentina,
Peru, Chile e Alemanha.
1 Como
observa Russell Kirk, o Direito hebreu e a moral cristã são reconhecidos como
parte do Direito britânico – Common Law. Essas duas fontes foram mais
influentes para esse sistema jurídico que o Direito romano. Também é
interessante notar que a Carta de Direitos da Constituição americana, Bill
of Rights, constitui uma reafirmação dos princípios do Common Law.
Além disso, em sua origem, a liberdade individual americana deve mais ao Common
Law do que a qualquer outra fonte (The roots of american order, p.
187).
2 Conforme noticiado
pelo The Guardian, “David Cameron promises to cut taxes”.
3 USA “is still the
pinnacle nation in the world. It is not the first pinnacle nation to face a
decline” (CARSON, Ben. America the beautiful, p. 7).
4
Como afirmou Joe Walsh, em seu programa radiofônico, na cidade de Chicago, no
mês de junho de 2015, AM 560 The Answer, as minorias não votam nos
republicanos porque querem um Estado grande, que cuide deles. Democratas
garantem milhares de votos cativos, apenas na promessa do Estado do Bem-Estar
Social.
5 A
esse propósito, vide o nosso artigo Admirável mundo novo e a crise
constitucional dos direitos humanos: da ficção à realidade. In: Crise constitucional:
espécies, perspectivas e mecanismos de superação. LAZARI, Rafael de;
BERNARDI, Renato. (Orgs.). Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2015.
“O
espírito libertário da Magna Carta de 1215 é a essência dos direitos humanos
fundamentais. Não há plena liberdade humana sem a limitação do poder. Esse
legado da cultura jurídica ocidental é o mais importante antídoto contra a
tirania e o abuso governamental.”