Por Aldir Guedes Soriano
Advogado no Estado de São Paulo. Vice-Presidente da ABLIRC – Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania e autor do livro “Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e Internacional”. Site do autor: www.aldirsoriano.com.br
O título do presente artigo – Levando o Estado laico a sério – foi cunhado a partir da obra de Ronald Dworkin: Levando o direito a sério. Na realidade, levar o Estado laico a sério, no contexto da democracia liberal, é uma conseqüência natural quando o direito é levado a sério.
O Estado laico é um legado do pensamento liberal cujo principal mentor foi o filósofo John Locke. A partir do século XVII, diversas correntes de pensamento se desenvolveram, tais como o racionalismo, o iluminismo, o darwinismo e o materialismo ateu. Todas elas contribuíram para o processo de secularização da mentalidade ocidental, que culminou com o desenvolvimento de uma heterogênea cultura leiga e, por fim, com o surgimento do Estado leigo. Por outro lado, há também uma base legal ou positivista, uma vez que o pluralismo e a separação entre a Igreja e o Estado são, geralmente, assegurados pelas constituições de diversos Estados democráticos. O constitucionalismo também pode ser considerado um legado do pensamento liberal. Assim, quer do ponto de vista jusnaturalista ou positivista, o estado laico deve ser levado a sério.
Para os Estados que adotam o regime da separação entre a Igreja e o Estado, levar o direito a sério implica levar o Estado laico, leigo ou não-confessional a sério.
Discussões sobre o Estado laico não são apenas necessárias, mas também inevitáveis, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, Turquia ou qualquer outro país. Nunca se falou tanto sobre esse assunto como neste ano. Pode-se dizer, até mesmo, que esse tema se tornou popular para os brasileiros após a visita do Papa Bento XVI, em maio de 2007. Contudo é preciso reconhecer a relação com questões cruciais para o cidadão. Daí a sua importância no contexto do Estado Democrático de Direito. O tema está ligado à parte dogmática da constituição, que compreende os direitos fundamentais da pessoa humana. Assim, há desdobramentos e correlações com temas polêmicos e atuais como liberdade religiosa, pluralismo, tolerância, aborto, ensino religioso nas escolas públicas, concordata e uso estatal de símbolos religiosos. Ao examinar como alguns desses temas polêmicos são tratados, é possível vislumbrar se o Estado laico realmente está sendo ou não levado a sério.
O que se entende por Estado laico, leigo, ou secular
O Estado laico é secular ou não-confessional, ou seja, é aquele em que o Estado se mantém separado da Igreja, das religiões e das confissões religiosas. Por outro lado, é importante observar que o Estado laico também não é ateu e pagão, como bem dizem Ives Gandra da Silva Martins e Antonio Carlos Rodrigues do Amaral. Ele não é ateu nem muito menos confessional: ele é neutro – ou, pelo menos, deveria, em tese, ser neutro.
Ocorre que nem sempre a laicidade é levada a sério. Na França e, por vezes, na Inglaterra o princípio da laicidade é levado ao extremo. Por conseguinte, a liberdade religiosa é cerceada à medida que se proíbe o cidadão de usar símbolos religiosos, tais como crucifixos e vestimentas muçulmanas e judias, nas escolas públicas. No Brasil, como se verá, nem sempre o Estado leigo é levado a sério.
O Estado confessional foi capaz de cometer graves desatinos e atrocidades. Os horrores das "santas inquisições" só foram possíveis com a associação entre a Igreja e o Estado, quando a heresia passou a ser considerada um crime contra o próprio Estado (crime de lesa majestade). Também não há dúvidas de que o Estado totalitário, ateu e hostil às religiões pode ser inimigo das liberdades individuais, principalmente em relação às liberdades de crença, consciência e culto. É notória a hostilidade e a intolerância do ateísmo marxista em face das religiões, mormente o cristianismo. Durante o período pós-guerra de 1945 a 1975, cerca de 330.000 mil cristãos, em média, eram mortos anualmente na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS. O cientista político Rummel estima que mais de 98 milhões de pessoas foram mortas por regimes marxistas no século passado. É verdade que muito sangue foi derramado em nome de Deus ou através de guerras religiosas. Entretanto é forçoso concluir que o ateísmo comunista foi muito mais deletério e assassino.
Atualmente os cristãos são as maiores vítimas de perseguições religiosas. Em pleno século XXI, cristãos são encarcerados, torturados e assassinados aos milhares. Vale lembrar a situação deplorável na Coréia do Norte em face dos graves crimes perpetrados pelo governo cruel e tirano de Kim Jong Il. Os norte-coreanos são privados dos mais elementares direitos fundamentais e não têm nenhuma liberdade religiosa. Países em que a mesquita está unida ao Estado são hostis às minorias religiosas. A Turquia apresenta um índice de perseguição religiosa muito menor porque tem se mantido laica. Entretanto, a situação está se agravando, sobretudo em alguns Estados muçulmanos da África.
Como se pode perceber, os dois extremos devem ser evitados. Por isso, é melhor que o Estado seja laico e neutro.
Liberdade religiosa e pluralismo
A separação entre o Estado e as religiões é pressuposto essencial para que haja plena liberdade religiosa. O Estado laico, democrático, liberal e pluralista que surgiu após a Revolução Francesa é, sem embargo, o modelo mais propício à coexistência pacífica de todas as manifestações religiosas existentes na sociedade.
A democracia liberal possui dois pilares ou princípios cruciais, que se inter-relacionam: livre exercício da religião e o não-estabelecimento da religião pelo Estado (nonestablishment). Daí a metáfora americana do muro de separação entre a Igreja e o Estado, como elemento basilar de todas as liberdades públicas.
A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América de 1776 reflete o liberalismo político como legado judaico-cristão. “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.”
O pluralismo religioso é salutar. Não representa nenhuma ameaça. Assim, a paz mundial não depende da eliminação das diferenças nem tampouco da união, unificação ou homogeneização da diversidade religiosa existente na sociedade.
Há, nos dias de hoje, uma enorme quantidade de livros e artigos que apontam a religião como o grande mal da humanidade. Tais publicações estão protegidas pelo direito à liberdade de expressão. Não obstante, as idéias veiculadas merecem e exigem contrapontos à altura e que também devem gozar de idêntica proteção jurídica. Pois bem, estudos demonstram que o ateísmo já derramou muito mais sangue do que a religião. Além disso, a história demonstra que a religião só se torna perigosa, opressiva e tirânica quando está associada ao poder temporal do Estado. Ademais, é forçoso reconhecer as inúmeras contribuições das religiões para a cultura e, também, para a construção do constitucionalismo liberal, ou seja, para a cultura do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. John Locke (1632-1704) não rompeu totalmente com a religião ao conceber um direito natural baseado tanto na razão quanto no livre arbítrio.
Na Espanha, há um monumento eloqüente a favor do pluralismo. A muralha de Ávila, construída no século XII por judeus, cristãos e muçulmanos, demonstra que o pluralismo não é apenas possível, mas útil e proveitoso para toda a comunidade. Por séculos, o interior dessa muralha de pedra ofereceu proteção em face da barbárie exterior. Por séculos as três religiões conviveram pacificamente na península ibérica. Porém, no século XV, a paz foi interrompida com os Autos de Fé da Inquisição de Torquemada, frutos da associação entre a Igreja e o Estado e que eram realizados em frente à Igreja de San Pedro. Tais Autos ocorreram no interior das mesmas muralhas que outrora representavam proteção e civilidade. O fato é que a convivência pacífica é possível; os conflitos são determinados pelo consórcio entre a Igreja e o Estado e, também, por fatores políticos e econômicos. Os reis católicos Fernando e Isabel solicitaram ao papa a instituição da inquisição espanhola. Eles elegeram o catolicismo como o bem comum e pretenderam a unificação política e religiosa por meio da eliminação das religiões dissidentes.
Ilustração 1: Vista parcial da muralha de Ávila, Espanha, que tem 2.516 metros de perímetro, 12 metros e altura e 88 torres. Construída na Alta Idade Média (século XII). Foto do autor.
Ilustração 2: Inscrição contemporânea que se encontra em uma das torres da muralha de Ávila: “A muralha, uma construção coletiva. Levantar seus muros requereu um grande esforço econômico e humano de cristãos, judeus e muçulmanos, homens livres e servos. Sua manutenção constante exigiu a colaboração de todos.” Tradução livre. Foto do autor.
Estado laico e o aborto
O Estado laico, por si só, não constitui argumento a favor da legalização do aborto, tema polêmico e responsável por intensos, atuais e, por vezes, apaixonados debates. O fato é que tanto argumentos favoráveis quanto desfavoráveis à prática de abortos podem ser extraídos dos valores e direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988. Assim, não é preciso recorrer ao conhecimento religioso para a sustentação de uma tese antiaborto. O princípio da laicidade requer apenas que os argumentos religiosos não sejam diretamente utilizados nas atividades estatais legislativas, administrativas, executivas e jurisdicionais.
A Constituição assegura o direito à vida, art. 5º., caput. Não se pode negar que há vida em fetos e embriões humanos. Por outro lado, existe o direito de escolha (autonomia individual). Então, a polêmica reside na colisão entre o direito à vida do feto e o direito de escolha da gestante. Não se pode deixar de ressaltar que o direito de escolha – autonomia individual – não é absoluto, mesmo sob o ponto de vista liberal.
Quem não se lembra daquele cidadão que foi preso porque descascou o tronco de uma árvore para fazer um chá a fim de combater a enfermidade de sua esposa. O que dizer de tantos outros, pobres desempregados, que são presos porque mataram uma capivara para mitigar a fome de seus filhos. Será que a vida de embriões e fetos humanos vale menos do que árvores e animais silvestres? É preciso utilizar a lógica do razoável e não apenas a lógica formal e positivista.
É crível pensar na aplicação da lógica do razoável em situações particulares como, por exemplo, no caso de anencefalia fetal e gravidez proveniente de estupro, por exemplo. A autonomia da gestante assume nova dimensão e parece razoável que ela, nesses casos, possa optar ou não pelo aborto.
Símbolos religiosos nos tribunais
O uso de símbolos religiosos por particulares nos espaços públicos é razoável e compatível com o princípio da separação entre a Igreja e o Estado.
Por outro lado, o uso de símbolos religiosos pelo próprio Estado, como os crucifixos instalados nos tribunais, viola os princípios da separação entre Igreja e o Estado e da isonomia e, também, o direito à liberdade religiosa. A proceder assim, o Estado assume a titularidade do direito de expressão religiosa, uma vez que é ele que está expressando a religiosidade ao ostentar objetos de culto de uma única religião.
No contexto laico, o Estado é titular passivo do direito à liberdade religiosa, jamais poderia ocupar a posição de titular ativo. Somente o ser humano e as organizações religiosas podem ser considerados titulares ativos do direito à liberdade religiosa.
A questão do uso de símbolos religiosos nos espaços públicos, no Brasil, teve certa repercussão com os pedidos de providência nº 1344 e apensos. Tais pedidos, submetidos à apreciação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, visavam à retirada dos símbolos religiosos das dependências de órgãos do judiciário.
O CNJ indeferiu os pedidos de providência supramencionados, por maioria do plenário. Já o Tribunal Constitucional Alemão decidiu pela inconstitucionalidade de um regulamento que determinava a colocação de um crucifixo em cada sala de aula do Estado da Baviera. Pode-se dizer que a decisão alemã, de fato, levou o Estado laico a sério.
Não há interesse público mais relevante do que oferecer ao cidadão a máxima eficácia de seus direitos fundamentais em condições de igualdade. A efetividade dos direitos humanos depende, em grande medida, da seriedade com a qual o Estado Laico é levado a sério, em todas as atividades estatais. A democracia liberal requer um judiciário imparcial e independente.
Notas:
1 A Constituição Federal de 1988 é essencialmente pluralista e laica. No art. 19, I, ela assegura a separação entre a Igreja e o Estado, conferindo o caráter secular do Estado. O pluralismo político é um dos fundamentos da República, art. 1º., V, da CF/1988. Tal princípio também deve nortear a educação, art. 206, III.
2 MARTINS, Ives Gandra da Silva e RODRIGUES DO AMARAL, Antonio Carlos. Estado laico não é Estado ateu e pagão. In: Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 de junho de 2007, Opinião, p. 3.
3 SORIANO, Aldir Guedes. Estado laico é neutro. In: Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 de julho de 2007, Opinião, p. 3. Segundo a Carta de Williamsburg, em comemoração dos 200 anos da Declaração Americana dos Direitos Humanos, o propósito do Estado laico não é religioso mas geral. Assim, o Estado também não pode assumir um propósito ateu e hostil à religião. Em suma, o propósito estatal não deve ser religioso e tampouco ateu. Por outro lado, a proteção da pessoa humana é, por certo, um dos propósitos nitidamente definido pelo Estado Democrático de Direito. (Cf. NOONAN, John T. Jr and GAFFNEY, Edward McGlynn Jr. Religious Freedom: History, cases, and other materials on the interaction of religion and government. New York: Foundation Press, 2001, p. 819)
4 O problema está relacionado com a lassidão e condescendência com atos que revelam a promiscuidade da relação entre o Estado e a religião.
5 Cf. SORIANO, Aldir Guedes. Estado laico é neutro. In: Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 de julho de 2007, Opinião, p. 3. As maiores atrocidades do século passado não foram praticadas por comunidades religiosas e sim por regimes seculares e totalitários tanto de esquerda quanto de direita. (GAFFNEY, Edward McGlynn Jr. Op. cit., p. xviii)
6 FOXE, John. The book of martyrs. Rewritten and updated by Harold j. Chadwick. Gainesville: Bridge-Logos Publishers, 2001, p. 326.
7 RUMMEL, R. J. Death by Government. New Brunswick: Transaction Publishers, 1994, p. 8.
8 Cf. COMPANJEN, Johan. Cristianismo de alto risco: a perseguição aos cristãos em 52 países do mundo. São Paulo: Carrenho, 2002, pp. 84 e 85.
9 Cf. SORIANO, Aldir Guedes. Estado laico é neutro. In: Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 de julho de 2007, Opinião, p. 3.
10 GREENAWALT, Kent. Religion and the Constitution: free exercise and fairness. New Jersey: Princeton University Press, 2006, p. 1.
11 Sobre a falta de cometimento da tentativa de unificação religiosa e a busca de uma religião mundial, vide PENN, Lee. False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism, and The Quest For a One-world Religion. Hillsdale/NY: Sophia Perennis, 2004.
12 Vide os livros “God Is Not Great: How Religion Poisons Everything” de Christopher Hitchens , “Deus, um Delírio” de Richard Dawkins e “Is Religion Dangerous?” de Keith Ward.
13 Vide a propósito, os livros “Death by Government” de R. J. Rummel e “The Black Book of Communism: Crimes, Terror, Repression” de Stéphane Courtois.
14 Cf. SORIANO, Aldir Guedes. Direito e Religião. In: Jornal Correio Braziliense. Brasília-DF, 30 de julho de 2007, Caderno Direito & Justiça, p. 1.
15 Sobre a lógica do razoável, vide SICHES, Luis Recasens. Tratado general de filosofia del derecho. Mexico: Editorial Porrua, 1959, pp. 645 e ss.
16 O relator, conselheiro Paulo Lobo, foi o único favorável à retirada dos símbolos religiosos e também propôs a realização de consulta pública, via internet, para aprofundar e debater a questão. Em face da divergência do conselheiro Oscar Argollo, o julgamento foi concluído em 06/06/2007, sem a realização de debate público.
17 SCHWABE, Jürgen. Cincuenta años de jurisprudencia Del Tribunal Constitucional Federal Alemán. Traducción de Marcela Anzola Gil. Bogotá: Ediciones jurídicas Gustavo e Inañez Konrad Adenauer Stiftung, 2003, pp. 119-123.
Bibliografia
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Massachusetts: Harvard University Press Cambridge, 1980.
COMPANJEN, Johan. Cristianismo de alto risco: a perseguição aos cristãos em 52 países do mundo. São Paulo: Carrenho, 2002.
FOXE, John. The book of martyrs. Rewritten and updated by Harold j. Chadwick. Gainesville: Bridge-Logos Publishers, 2001.
GREENAWALT, Kent. Religion and the Constitution: free exercise and fairness. New Jersey: Princeton University Press, 2006.
MARTINS, Ives Gandra da Silva e RODRIGUES DO AMARAL, Antonio Carlos. Estado laico não é Estado ateu e pagão. In: Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 de junho de 2007, Opinião, p. 3.
NOONAN, John T. Jr and GAFFNEY, Edward McGlynn Jr. Religious Freedom: History, cases, and other materials on the interaction of religion and government. New York: Foundation Press, 2001.
PENN, Lee. False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism, and The Quest For a One-world Religion. Hillsdale/NY: Sophia Perennis, 2004.
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SCHWABE, Jürgen. Cincuenta años de jurisprudencia Del Tribunal Constitucional Federal Alemán. Traducción de Marcela Anzola Gil. Bogotá: Ediciones jurídicas Gustavo e Inañez Konrad Adenauer Stiftung, 2003.
SICHES, Luis Recasens. Tratado general de filosofia del derecho. Mexico: Editorial Porrua, 1959.
SORIANO. Aldir Guedes. Estado laico é neutro. In: Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 de julho de 2007, Opinião, p. 3.
________. Direito e Religião. In: Jornal Correio Braziliense. Brasília-DF, 30 de julho de 2007, Caderno Direito & Justiça, p. 1.
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