sexta-feira, dezembro 02, 2011

Artigo: Breve Anatomia do Genocídio

Por Gilberto Cury

No dia 21de novembro de 2011, cerca de 30 anos depois da queda do ditador Pol Pot, começou o verdadeiro julgamento do genocídio perpetrado pelo Khmer Vermelho, no Camboja. O antigo chefe dos torturadores do regime, Kaing Guek Eav – conhecido como “Duch” – é julgado por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. O julgamento acontece num tribunal cambojano, respaldado pelas Nações Unidas.

“Duch”, agora com 66 anos, é o primeiro de cinco antigos dirigentes do Khmer Vermelho que serão julgados pelas atrocidades que resultaram em bem mais de dois milhões de mortos. A perseguição mais acentuada foi a religiosa e também a étnica. Todas as religiões foram proibidas. Nos anos 70, “Duch” dirigiu o centro de interrogatórios S-21 em Phnom Penh, onde mais de 12 mil pessoas foram torturadas e assassinadas pelo aparelho repressivo do regime do ditador maoísta Pol Pot. O campo, também conhecido pelo nome de Tuol Sleng, foi convertido em Museu do Genocídio.

O Camboja quer acertar contas com a História. As Nações Unidas pretendem fazer justiça à memória dessas vítimas.

O ódio, no entanto, continua sendo o sentimento que mais tem prosperado no mundo, neste século XXI. Manifesta-se de muitas maneiras, entre as quais o genocídio é com certeza a obra prima da maldade humana. Alguns genocídios ainda não foram estancados, outros estão incipientes e há mais por vir. O presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, discursando numa assembléia da ONU, declarou que vai “varrer do mapa” Israel e os Estados Unidos. Um genocídio político-étnico-religioso?

Intensos rumores de guerra, nestes tempos, lembram profecias bíblicas.

Como prevenir genocídios? O primeiro passo é entender a sua anatomia.

O genocídio nunca é um processo que surge do nada e causa surpresa. Ele começa, cresce e se desenvolve de maneira previsível. Em cada fase pode haver medidas preventivas para detê-lo. Existe uma sequência de ações que têm sido historicamente observadas, embora o processo não seja linear.

Todas as culturas têm categorias que usam para distinguir as pessoas entre "nós” e “eles", seja por etnia, raça, religião, ou nacionalidade. Assim, vemos ou já vimos os casos de nós os brancos contra eles os negros (na África do Sul), nós os alemães arianos contra eles os judeus (na Alemanha nazista), nós a maioria hutu contra a eles a minoria tutsi (em Ruanda), nós os católicos contra eles os protestantes (na Irlanda do Norte), nós os muçulmanos contra eles os cristãos coptas (no Egito pós-Primavera Árabe) e assim por diante.

As sociedades bipolares onde faltam categorias mistas, como Ruanda e Burundi, são as mais propensas a ter genocídio. A principal medida preventiva, na fase inicial, é desenvolver instituições universalistas que estejam acima das divisões étnicas ou raciais e que possam ativamente promover a tolerância e a compreensão, estabelecendo assim classificações que transcendem aquelas divisões. A Igreja Católica poderia ter desempenhado este papel em Ruanda, não tivesse ela sido violentamente dividida pelas mesmas dissensões étnicas da sociedade ruandesa. Na Tanzania, contudo, a estimulação de uma língua comum fez com que fosse promovida uma identidade nacional transcendente. Esta busca de algo em comum é vital para a prevenção de genocídio.

As sociedades dão nomes ou atribuem adjetivos às suas classificações dos grupos sociais, ou então os distinguem por cores ou roupas e aplicam símbolos aos membros dos grupos. Isto é um costume universal, constatado por sociólogos e não resulta necessariamente em genocídio, a menos que seja combinado com ódio. Neste caso, esses símbolos podem ser impostos à força a membros indesejáveis de grupos párias. Assim foram a estrela amarela para os judeus sob a dominação nazista e o cachecol azul para as pessoas da Zona Oriental do Camboja, sob o Khmer Vermelho. É certo que os símbolos de ódio podem ser legalmente proibidos, como as cruzes suásticas e assim também o palavreado que expressa ódio. Marcas grupais como roupas próprias de certa “gangs” ou tatuagens de certas “tribos” podem também ser declaradas ilegais. O problema é que os limites impostos por lei certamente falharão se não forem sustentados por uma força cultural popular. Embora hutu e tutsi fossem palavras proibidas em Burundi até os anos 1980, palavras-código as substituíram.

A negação do uso de símbolos, contudo, pode se tornar uma arma poderosa, como foi na Bulgária, onde o governo se recusou a fornecer suficientes distintivos com a estrela amarela, possibilitando assim que pelo menos oitenta por cento dos judeus não tivessem que usá-los. Isso ajudou a destituir aquela estrela de seu significado como um símbolo nazista a eles imposto.

Na bipolaridade, um grupo nega a humanidade do outro grupo. Seus membros são equiparados a animais, vermes, insetos ou pragas. Este extremo desprezo supera a repulsa humana normal contra o assassinato. Nesta fase, a propaganda cheia de ódio, nos meios de comunicação, é usada para difamar o grupo de vítimas. No combate a esta degradação forçada, o incitamento ao genocídio não deve ser confundido com o discurso protegido por lei, onde a liberdade de expressão é garantida. Sociedades genocidas não têm proteção constitucional para discursos argumentativos e devem ser tratadas diferentemente das democracias. Líderes locais e internacionais devem condenar o uso do discurso do ódio e torná-lo culturalmente inaceitável. Dirigentes que incitam o genocídio precisam ser oficialmente impedidos de fazer viagens internacionais e devem sofrer o congelamento de seus ativos finaceiros abrigados no exterior. Emissoras de telecomunicação que pregam o ódio devem ter suas licenças cassadas. A propaganda do ódio precisa ser terminantemente proibida e os crimes de ódio prontamente punidos.

O genocídio, em muitos casos, é uma atrocidade organizada pelo Estado, o qual muitas vezes usa milícias para fornecerem provas que neguem a responsabilidade desse Estado, como as milícias Janjaweed, no Sudão, integradas por árabes nômades de Darfur e do Chade. Às vezes essa organização é informal ou descentralizada (grupos terroristas). Unidades especiais do exército, ou então milícias, são treinadas e armadas. Planos são feitos para assassinatos genocidas. Para combater esta fase, a participação nestas milícias deve ser declarada ilegal. Deve-se negar a seus líderes vistos para viagens ao exterior. A ONU deve impor embargos de armas aos governos e aos cidadãos de países envolvidos em massacres genocidas e criar comissões para investigar as violações, como foi feito em Ruanda, após o genocídio.

A situação se agrava quando os extremistas separam os grupos em polos opostos. Grupos de ódio veiculam, nos meios de comunicação, uma propaganda polarizadora. Isto aconteceu com perverso requinte no que ficou conhecido como Holocausto dos judeus, ou Shoah. Leis podem proibir o casamento entre os grupos, ou a interação social. O terrorismo extremista busca intimidar e silenciar os indecisos que se mantém no centro. Os moderados do próprio grupo dos agressores seriam bem capazes de parar o genocídio e por isso são os primeiros a serem presos e mortos. A prevenção, então, pode significar dar proteção de segurança aos líderes moderados, ou assistência a grupos de direitos humanos. Bens de extremistas podem ser apreendidos e vistos para viagens internacionais negados também a eles. Golpes de Estado por parte de extremistas devem ser impugnados por sanções internacionais.

Na falta de atitudes preventivas, as vítimas são identificadas e separadas em função de sua identidade étnica ou religiosa. Listas de morte são elaboradas. Membros dos grupos de vítimas são obrigados a usar símbolos de identificação. Suas propriedades são confiscadas. Eles são freqüentemente segregados em guetos, deportados para campos de concentração, ou confinados em uma região sem recursos, onde padecem de fome. Nesta fase, uma Emergência de Genocídio precisa ser declarada. Se a vontade política das grandes potências, as alianças regionais, ou o Conselho de Segurança da ONU podem ser mobilizados, deve ser preparada uma intervenção internacional, ou então prover-se assistência substancial para que o grupo de vítimas possa se preparar para a sua auto-defesa. Caso contrário, pelo menos a assistência humanitária deve ser organizada pelas Nações Unidas e por grupos particulares, para a inevitável maré de refugiados que virá.

Começa então o extermínio, que rapidamente se torna matança em massa, legalmente conhecida como genocídio. Para os assassinos, é "extermínio" mesmo, porque eles não acreditam que suas vítimas sejam inteiramente humanas. Às vezes o genocídio resulta em mortes por vingança de um grupo contra outro, criando um ciclo de genocídio bilateral tipo redemoinho, como aconteceu no Burundi. Nesta fase, apenas uma intervenção armada rápida e avassaladora pode parar o genocídio. Áreas realmente seguras ou corredores de fuga de refugiados devem ser estabelecidos com proteção internacional fortemente armada. Uma brigada de alta prontidão da ONU, uma força de reação rápida da União Européia, ou forças regionais devem ser autorizadas a agir pelo Conselho de Segurança da ONU, se o genocídio for pequeno. Para intervenções maiores, uma força multilateral autorizada pela ONU deve intervir. Se a ONU estiver paralizada, as alianças regionais devem agir. É hora de reconhecer que a responsabilidade internacional de proteger transcende os estreitos interesses de Estados-nação individuais. Se as nações fortes não fornecerem tropas para intervir diretamente, devem fornecer o transporte aéreo, equipamentos e meios financeiros necessários para os Estados regionais intervirem.

Logo que um genocídio se aproxima do final, começa a sua negação. Os perpetradores pretendem que ele nunca existiu. A negação está entre os mais seguros indicadores de novos massacres genocidas. Os agentes de genocídio cavam as sepulturas múltiplas, queimam os corpos, tentam encobrir provas e intimidam testemunhas. Eles negam que tenham cometido qualquer crime e muitas vezes poem a culpa do que aconteceu nas vítimas. Eles bloqueiam a investigação dos crimes e continuam a governar até serem expulsos do poder à força, quando então fogem para o exílio. Lá eles permanecem impunes, como Pol Pot (exilado na Tailândia, morreu no Camboja, em 1998) ou Idi Amin, conhecido como o “carniceiro de Uganda” (exilado na Líbia e na Arábia Saudita, morreu em 2003), a menos que sejam capturados e um tribunal seja estabelecido para julgá-los.

A resposta certa à negação de um genocídio é a punição por um tribunal internacional ou por tribunais nacionais. Ali, a evidência pode ser ouvida e os responsáveis punidos. Contudo, tribunais como os da Iugoslávia ou de Ruanda, ou o tribunal internacional que está julgando o Khmer Vermelho no Camboja, ou o Tribunal (ou Corte) Penal Internacional, com sede em Haia, podem não conseguir condenar todos os assassinos genocidas.

Recentemente vimos acontecer um caso deste tipo. Sandor Kepiro, húngaro, nazista, acusado de matar prisioneiros judeus durante a época do Holocausto, foi condenado por um tribunal de seu país em 1944, conseguiu ser libertado da prisão e refugiou-se na Argentina. Foi condenado novamente “in absentia”, pelo mesmo tribunal. Voltou à Hungria em 1996, já idoso. Em 2006, foi declarado o criminoso nazista mais procurado. Foi encontrado, levado a um tribunal de Budapeste e absolvido em julho de 2011, apesar de provas insuspeitas e do respeitável empenho do dr. Efraim Zuroff, conhecido caça-nazistas, diretor do Simon Wiesenthal Center de Jerusalem. Kepiro faleceu de morte natural dois meses depois.

Casos como esse acontecem. Contudo, em se perseverando com firme vontade política de fazer justiça, algum fruto se há de colher.
  • Gilberto Cury é colaborador da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB SP.

Nenhum comentário: